Indiferença


O Verão tinha chegado enfim.
Segundo a rádio, o dia mais quente do ano, até àquele dia. Os pés bronzeados pousados no tablier do carro assim o comprovavam de tão quentes que ficavam, com o sol do meio dia a "cozinhá-los". Quando abriu a porta do carro, o ar seco e irrespirável, fez recordar que estavam na Margem Sul, sinónimo de proximidade da região Alentejana. O que ela desejava um mergulho no mar... Mas, antes disso, tinha que almoçar, era mais forte do que ela...
Cada passo parecia um tormento debaixo daquele sol abrasador. Ainda bem que a distância era curta do estacionamento ao restaurante da estação de serviço...
Quando se senta, o seu olhar vai para um mendigo.
Através da parede de vidro virada para a rua podia observar todos aos seus movimentos. Ao contrário de muitos por quem passava diariamente, este, mexera com ela. Tinha a barba grisalha, tal como o cabelo. Certamente à uns bons meses que não viam tesoura, gilette, sabonete ou shampoo. Curvado, arrastava os pés enfiados nuns ténis nitidamente acima do seu tamanho. Tão velhos quanto a sua sweatshirt, rota e suja de sangue. Como podia ele não ter calor?!... -pensava enquanto trincava o hamburguer e mergulhava a batata frita no molho.
Voltara a olhá-lo... Mesmo com roupas tão largas, a sua magreza era notória. Os seus olhares cruzaram-se. Foi aí que ela percebeu. Era cego do olho esquerdo. A imagem daquele rosto impressionantemente magro e deformado chocou-a de tal forma, que por segundos, pareceu-lhe ter recebido um soco no estômago. Ele limitava-se a arrastar-se por entre as pessoas que entravam e saíam do restaurante. Mas pessoas desta "classe social" à muito que se tornaram invisíveis para o mundo. Assim como a moeda que ele ia pedindo aos que o ignoravam.
Sentada debaixo de ar condicionado, a observar tudo aquilo enquanto comia, passava pelos seus pensamentos quantas vezes por dia comeria ele...ou à quanto tempo não comia aquela alma...
Não conseguia parar de o observar, tinha perdido o apetite ao ponto de apanhar aversão ao que tinha comido. Estava rodeada de pessoas obesas que comiam simplesmente por prazer... o dinheiro comprava tudo, principalmente os excessos. Este mendigo não buscava dinheiro para se embebedar...tinha fome...simplesmente fome. Como podia viver num mundo tão cruel que ignorava um ser faminto às portas de um restaurante onde quilos de comida eram deitados ao lixo todos os dias?!?... Era absurdo!
Sem se conter mais, começou a chorar. Não sabia ao certo se de vergonha por não ter coragem de ser diferente dos restantes, se pelo facto de sentir de uma certa forma a dor do mendigo. Ninguém devia ser privado de comida, em parte alguma do Mundo, era um direito primário, não um castigo...
Teve vontade de lhe ir comprar um menu, água para não desidratar, oferecer-lhe um banho, roupa lavada...qualquer coisa que trouxesse àquela alma algum alento e esperança.
Depois de regressar ao carro, sentia o calor que parecia esturrar. Sem racicionar, abriu a porta do carro, comprou uma garrafa de água fresca, dirigiu-se a ele entregando-a de bom agrado, perguntando-lhe se não gostaria de comer um bom menu com tudo ao que tinha direito.
Na maior das humildades o pobre homem pediu o menu "com aquela sandes de entermeada, já que podia escolher". O seu coração quase parou com aquele pedido tão singelo. Depois de uma "luta" com a empregada do balcão que só faltou dizer que se negava a vender o menu "àquele senhor da rua", alegando que jamais o deixavam à fome, conseguiu satisfazer o simples pedido daquele pobre homem.
Os agradecimentos do homem foram a maior gratificação que alguma vez poderia ter recebido de um ser humano. Quando se despedia já dentro do carro acenando-lhe com o braço, a expressão do velho homem resumia-se a um sorriso aberto e puro, grato pelo simples acto de solidariedade. O sorriso singelo, igual ao de uma criança, enterneceu-a e fê-la chorar sem se conter.
Chorava de raiva por existirem pessoas no Mundo nesta mesma situação, chorava por não fazer muito mais por aquele homem, cujo nome não chegara a saber, mas chorava principalmente por fazer parte da raça humana que ignora tudo o que não agrada à vista...
Foto por: Sofia Baleia


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