Devaneios II

Chovia torrencialmente.
O saltitar das gotas no alcatrão quente pulavam como bolas de borracha, grossas, formando um lençol de água que cobria toda a estrada. Ninguém vagueava pela rua naquele final de tarde mórbido, apenas ela.
O seu cabelo preto escorrido pela chuva caía-lhe sobre os ombros, colando-se à cara em farripas desalinhadas. As mãos pálidas tremiam de frio, assim como as suas pernas nuas, finas como canivetes. A sua blusa outrora branca, era agora transparente, colada ao corpo fazendo sobressair o decote, vestido com um sensual soutien branco rendado igualmente ensopado. A sua saia supostamente rodada por cima do joelho, estava agora colada a si como uma lapa, fazendo sobressair as suas linhas delicadas e sensuais. As gotas da chuva escorriam-lhe pela cara disfarçando as suas lágrimas.

Sentia-se perdida, mas fora uma escolha unicamente sua, nada tinha a lamentar. Apesar de todos os contras, ela sabia que seria melhor assim.
Seguiria em frente sem olhar atrás, sem se preocupar com o que poderiam pensar...
Pela primeira vez seguiria o seu instinto. Talvez não a levasse muito longe. Mas de uma coisa tinha a certeza, não queria morrer sem tentar.
Com toda a chuva que caía, passara-lhe pela cabeça se não seria um mau presságio. E se fosse?... Teria deitado tudo a perder por um capricho?... a vida não seria tão injusta assim, ou seria?!...

A maldita chuva insistente tornava-lhe a visão turva. Distraída nos seus devaneios habituais foi tropeçar na conduta de escoamento de águas. O seu corpo foi projectado para frente com a força da inércia. Quando se preparava para se estatelar no alcatrão duro, um braço amparou-lhe o corpo como se de uma pena se tratasse. O seu instinto foi o de agarrar esse mesmo braço, inesperado, quente, seguro, confortavelmente seco...

Por momentos sentiu o seu corpo desfalecer, pelo seu pensamento passaram mil cenários, tais como... o de ser raptada, violada ou até mesmo violentada. "Mas quem ampararia a sua vítima minutos antes do acto macabro?!"
Sabia que estava a ser idiota, ou não... "Grrrr"...esta incerteza constante deixava-a fora de si.
Quando se sentiu equilibrada, soltou-se do braço desconhecido, pôs-se de pé o mais dignamente possível, dado o seu estado deplorável e agradeceu, mesmo sem fixar o olhar na figura que a observava empunhando um grande e útil guarda-chuva. Seguiu em frente muito segura de si, mas a morrer de vergonha pela sua figura ridícula.

Deu dois passos e tropeçou novamente. Desta vez numa daquelas tampas de esgoto de um nível superior ao da estrada. Mal queria acreditar no seu azar. Na tentativa de se equilibrar, esbracejou. O seu instinto foi segurar-se a tudo o que encontrou. Mais uma vez o braço forte salvou-a de uma queda digna de ser filmada. O mesmo envolveu-a num abraço contra o seu corpo extremamente quente, com um aroma fresco como o de um bosque numa manhã de orvalho. Ao que uma voz grave mas suave lhe disse junto ao ouvido "espero que não haja uma 3ª queda, pois receio que será de vez..." e sorriu, soltando um leve bafo quente contra ao seu ouvido, que a faz tremer não sabendo ao certo porquê.

No entretanto, deixou-se de ouvir o tiritar das gotas contra o chão negro e brilhante, o sol estava numa tentativa de furar as nuvens cinzentas que sobravam daquela chuva de Abril. Os únicos dois indivíduos presentes no estacionamento estavam envolvidos de tal forma, que quem os visse, julgá-los-ia dois amantes protegendo-se da chuva. O guarda-chuva continuava aberto, protegendo-os, do sol de final de tarde.
Agora que se encontravam os dois de pé, hirtos, ela reparara no verdadeiro tamanho do homem que a salvou, não de uma, mas de duas grandes quedas. Alto, cabelo grisalho, mais comprido que o habitual, mas extremamente bem penteado, apesar das ondas, rosto comprido mas de aspecto jovem,incrivelmente atraente, mas com uma expressão no rosto demasiado divertida para o gosto dela.

O silêncio começava a ser perturbador, mas mesmo assim ela só conseguiu esboçar um sorriso amarelo, depois de se ter soltado do abraço protector dele. Afastou-se lentamente, pronta para virar costas e enterrar-se no buraquinho mais pequeno que pudesse encontrar. O dia não estava a correr como o esperado, definitivamente...
Até que, sentiu o seu braço direito agarrado por dedos firmes, quentes e seguros de que não se soltaria.

Ela parou de caminhar, abismada com o estranho da situação. Que se tivesse apercebido, não estava desiquilibrada..."porque diabo estava aquele homem a tocar-lhe novamente?!..."
Irritada consigo própria pela falta de coragem da parte dela e pelo excesso de ousadia da parte dele, respirou fundo e disse muito calmamente como se estivesse a discursar:
"vai desculpar-me a pergunta, mas eu posso saber porque insiste em me agarrar?!...Se é por eu não ter agradecido, lamento... Realmente foi muito indelicado da minha parte...Fazemos assim, eu agradeço e o senhor tira esse sorriso que me está a deixar ainda mais envergonhada do que seria de esperar de uma situação patética como esta. Combinado?"

Estava vermelha como um pimento, discursou o mais rápido que conseguiu como se de uma injecção se tratasse. Tinha o ar mais sério que se poderia imaginar. Exactamente o oposto do dele. Poderia dizer-se mesmo que estaria a fazer um esforço para conter uma gargalhada. Ao que respondeu:
" Dispenso o seu obrigado, não fui obrigado a nada, mas gostava que aceitasse a minha gabardine, parece-me estar com frio. Entretanto poderia acompanhá-la a casa, não vá começar a chover novamente. Combinado?..." - de seguida esboçou um sorriso espontâneo, aberto e despreocupado que a fez sentir como melaço, derretida.
Que deveria ela fazer? Realmente sentia-se um farrapo humano. Um bom caffe latte fá-la-ia recuperar forças, a companhia não era de se deitar fora. E tinha decidido começar a seguir os seus instintos, mas...
"Peço desculpa, mas...bom...depois do dia que tive hoje, você caiu-me do céu...mas com uma condição...pago eu!". Sentia-se agora um pouco mais descontraída. Ele acenou sorrindo abertamente e respondeu com um ar divertido:" Parece-me justo...!"

Comentários

Anónimo disse…
hmm ja li! eu nao gosto de textos que descrevam sucintamente o que acontece a cada promenor, pk acabamos por nos perder em certos promenores e n perceber bem a historia! e há certas expressoes k a meu gosto n ficam bem! mas de resto..esta bem estruturado...tem pernas para andar! acabar é sem fim...por assim dizer!

Mas como tambem nao percebo muito, isto é apenas a minha opniao pessoal!
Anónimo disse…
Jogas bem com as palavras, sao muito reais e fortes os adjectivos que das as simples coisas, apesar que a meio ter achado um pouco confuso. Mas voltei a reler e entendi. Triste e ao mesmo tempo... misterioso, e misterioso como o homem que a ajudou.


**
Lali disse…
Rc,
Apesar de não te conhecer, agradeço o teu comentário. Se todos os autores dos seus textos escrevessem da mesma forma nao existiria literatura, mas sim cópias.

Os gostos são subjectivos.

Volta sempre ^^

Mensagens populares