"O fulgor das suas memórias, todavia, era demasiado ténue(...). Passaram ao lado um do outro sem trocar palavra, e desapareceram por entre a multidão em direcções opostas, para sempre.   Uma história triste, não lhe parece?


    Sim, era isso mesmo que eu lhe deveria ter dito.”




***



   E uma vez mais, aquele autor a surpreendia. 
  O segundo que se seguiu à leitura da última frase na página 78 do livro, carinhosamente, comprado na famosa Feira do Livro, pareceu ficar suspenso no ar artificial e sufocante da carruagem do metro. Susteve a respiração após um suspiro, maravilhada com o poder da ordem das palavras em determinados contextos.
    - Uau!… - Sussurou baixinho enquanto esboçava sorrisos, sem perceber que estava a expressar por palavras a sua surpresa perante estranhos.
   Embrenhada na leitura, não ouviu a simpática voz-off a anunciar a próxima e esperada paragem “Parque”. Durante os 365 dias do ano, aquela estação em particular, servia-lhe de destino, durante aproximadamente duas semanas, com um único propósito. Após enfrentada a escadaria rolante, lembrete das suas medonhas vertigens, em jeito de Alice num buraco invertido, o seu topo anunciava o portal para o Parque das Maravilhas, ou para a mais conhecida e preferida, senão única e desejada Feira do Livro.
    Este ano, inesperadamente, utilizava a estação Azul da Fantasia, uns meses mais cedo que o esperado.

     - Azul!? Estás no Parque! Tens que sair!… - gritou-lhe a voz interior que tantas vezes a salvava do embaraço devido às suas viagens ao imaginário. 
    Enquanto tentava furar a multidão da lagarta até à porta de saída, que já estilhava os tão conhecidos três apitos de aviso de fecho de portas, arrumava, atrapalhada, o livro na sua gigante bolsa, que por vezes se fazia parecer com o chapéu de um mágico. 
    Com um pé fora e o outro dentro da carruagem, o saco cede espaço ao seu mais actual portal mágico e ela suspira de alívio por sair a tempo. Enquanto isso, o seu olhar deixa de focar o poço que é a bolsa para procurar as escadas de acesso ao Parque. Não queria de modo algum chegar atrasada. Nisto, sem dar conta no imediato, ouve: 
   - Mas que surpresa!… - sussurra uma voz vinda de alguém que aguardava a paragem do comboio e que, claramente, não contava ver um alguém conhecido áquela hora da manhã. Uma voz grave e calma. Seca, mas não áspera, quase doce, absolutamente sensual, acompanhada de um franco sorriso, podia escutar-se. Uma voz de alguém que articula bem as palavras, demonstrando ser um bom falante, habituado ao discurso. Uma voz estranhamente familiar. Mas tão estranha, que seria quase impossível surgir a possibilidade de a voltar a ouvir na sua vida. Muito menos naquele dia, naquela hora, naquele local. 
    Não hoje.

   Depois de processado o inesperado acontecimento, já os seus pés alcançavam os degraus da escadaria de acesso à saída. 
   Valeria a pena olhar para trás e confirmar o que o seu coração lhe dizia sobre o que os seus ouvidos teriam escutado? - perguntava-lhe a sua amiga voz interior.
  A vida era repleta de surpresas. Umas vezes boas, outras vezes más. Era uma certeza adquirida recentemente na sua vida, sem sombra para dúvidas. Mas, logo hoje?!…
   Não. Hoje não havia tempo para fantasia, mesmo estando na estação mais encantada de todas.
   Sem olhar para trás e com aquela voz a entoar na sua cabeça, lá subiu as escadas entre a multidão, corajosamente. De volta à superfície, onde um novo capítulo estava por escrever.


Texto by Lali

Comentários

Orlando o Curioso disse…
Ficamos assim?!Adiantada, porquê? E a voz, era de quem? Patrick Dempsey? Johnny Depp? O senhor secretário de estado da administração escolar? Que tinha havido antes, para que fosse tão familiar? E - mais tradicionalmente - depois?
Lali disse…
Avizinham-se próximos capítulos. Aceitam-se sugestões...
Orlando o Cuidadoso disse…
Um work in progress... I see... Vou recostar-me e esperar (sou tão paciente!). Uma sugestão: não peças sugestões - rouba-as.
O Orlando disse…
"A imagem apresentada no ecrâ LCD não tem normalmente definição q.b. para verificarmos se o foco está realmente bem feito." "O tempo não estava mau. O vento continuava forte, mas não arrefecera. Com o zum-zum do vento perdi, é claro, muitos dos ruídos que poderiam servir-me de indício, mas os outros também se podiam queixar do mesmo mal." Escrevia depressa, como habitualmente, o grande bloco de desenho que lhe servia de caderno entalado entre a barriga e o joelho da perna direita, cruzada sobre a esquerda: "Dalloway contava esta história de banda desenhada para garotos 'upper middle class' com uma voz pouco audível de barítono, simulando uma neutralidade cáustica. Mas poderá uma voz de barítono ser neutra e cáustica?" "Durante três anos, Rosalia encontrou em cada nova miséria uma consolação para a ausência da irmã..." "A princípio a rapariga do Dauphine insistira em controlar o tempo, ainda que para o engenheiro do Peugeot 404 isso tivesse pouca importância." Os livros escorregavam-lhe dos dedos, da pressa, da irritação, e tombavam da mesa para o tapete em baques surdos e sucessivos. Só mais um, vá, apostou consigo próprio: "Há qualquer coisa no mundo que aceita o ladrão de cavalos mas não autoriza outros a olharem, sequer, para as rédeas." Ergueu-se e atirou para dentro do saco o bloco, um molho de chaves e um outro de lápis e esferográficas. Desceu ao rés-do-chão impedindo-se de correr, naquela timidez bizarra que nunca o deixara trair em público estados de alma, por "pensamentos, palavras e obras" recitou, irónico, mentalmente. Saiu do prédio e o calor atingiu-o com uma brutalidade de forno; mas com o Sol podia bem. Atravessou a rua em direção ao Metro.

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